VINTE PANOS PRA MANGA
Marcos Fabrício Lopes da Silva*

O ser excede o parecer. O que é real possui o aspecto de existência e posição de qualidade em si mesmo. O ser é diferente do estar: é mais profundo, entranhado; mais propriedade que estado. O ser está e vem a ser. Para conjugar o verbo amar é preciso conjugar o verbo ser. O amor é exercício de felicidade, não de poder. Amar é entrar em relação profunda, sem imobilizar o outro e a si próprio. É o máximo de percepção do outro sem perda de si mesmo. É identidade através do outro, jamais identificação, dependência, mimetismo. Identidade liberta de identificação, eis a outra face do enigma do amor. À luz da psicanálise, Jacques Lacan (1901-1981) perguntaria: “Agiste conforme o desejo que te habita?” (Seminário 7 – A Ética da Psicanálise: 1959-1960).

“Resolvi levar nosso caso a julgamento./Chamo como testemunha o Arpoador,/que de sua boca, ouvi juras./Convoco também o calçadão de Ipanema,/que sentiu nossos passos/rumando ao prazer./E Drummond, que naquela noite estava de óculos,/pode ver direitinho, todo o carinho/que tinha por você./E por último o luar, beirando o mar/de Copacabana, que como uma onda/indo e voltando, acabou levando/o que nunca existiu./E o júri acaba por decidir,/que o acusado é culpado/de me fazer feliz… mas só por uma noite./E a pena pelo crime: exilado da minha vida./Mas ainda cabe recurso” – poetiza Cecília Sóter, com humor e irreverência, a relação entre amor e poder. Trata-se do poema “O julgamento”, integrante do livro Vinte poemas de amor para se ler tomando café (2019). Em tempos de “senso de justiça” à flor da pele, amar nega (se é amor e não poder) o controle, embora o amante tenha impulsos de o fazer. Namorar é a forma bonita de viver um amor. Não namora quem cobra nem quem desconfia.

Não namora quem só fala em si e deseja o parceiro apenas para a glória do próprio eu. Não namora quem busca a compreensão para a sua parte ruim. Invejoso não namora. Tampouco o violento! Namora quem lê nos olhos e sente no coração as vontades saborosas do outro. Como sugere a voz poética de Cecília Sóter: “Gosto do jeito que você me olha, com olhar de querer/Gosto de como você me abraça, como se nunca fosse me soltar/O simples silêncio entre nós fala mais do que qualquer discurso/Meu lindo! Sua linda!/Vamos de cachaça ou de pizza. De balada ou de preguiça. Mas vamos/juntos, porque juntos somos bons!” (“Amoriudo”). Por isso só namora quem se descobre dono de um lindo amor, tecido do melhor de si mesmo e do outro. Namora quem sonha, quem teima, quem vive morrendo de amor e quem morre vivendo de amar.

O excesso de fala e a falta de escuta podem quebrar o encanto amoroso. O que há, em geral, ou são monólogos simultâneos trocados à guisa de conversa, ou são monólogos paralelos, à guisa de diálogo. Para ouvir, é necessário limpar a mente dos ruídos e interferências do próprio pensamento durante a fala alheia. Ouvir implica entrega ao outro. Ouvir é grande desafio. Desafio de abertura interior; de impulso na direção do próximo, de caminho com ele, de aceitação dele como é e como pensa. Ouvir é proeza. Ouvir é raridade. Ouvir é ato de sabedoria. Depois que alguém aprende a ouvir, faz descobertas antes escondidas ou latentes em tudo aquilo que os outros estão “dizendo” a propósito de “falar”.

“Você chegou por acaso/E já foi tomando conta do espaço/Que há muito não era de ninguém/Já acostumado com o vazio/Deu até arrepio/De finalmente ter alguém/Foi tudo muito espontâneo/Como uma flor que desabrocha/Na primavera, um ipê/E meu coração que outrora/Decidiu não mais se abrir,/Escancarou-se pra você/Mas você mudou com a estação/E o calor que nos consumia/Já não existia/E meu coração como de costume/Endureceu-se como uma pedra/Maltratado novamente” – narra Cecília Sóter os sabores e dissabores da experiência amorosa, em “Estações”. Talvez bondade consista em viver a trágica disjunção da vida procurando superar cada momento inevitável de maldade, com atos posteriores portadores de força, beleza ou solidariedade. Difícil não é ser puro. Difícil é ser normal, nem puro ou sujo, mas puro e sujo; normal, falível, sem aura, capaz de compreender e perceber o outro. “Você cruzou ilegalmente/a fronteira do meu coração” – sinaliza Cecília Sóter, em “Território Proibido”, para os perigos e os prazeres do amor, fazendo, mais uma vez, o uso sapeca do plano jurídico.

Por isso, vale realizar uma espécie de crítica à pureza e ao idealismo. Busco inspiração argumentativa nestes versos de Cecília Sóter: “Sou dessas…/Sou dessas que brincam com o acaso/Dessas que acreditam sem ver/Sou dessas que fazem o que sentem/Dessas que às vezes agem sem pensar/Sou dessas que vão à luta/Dessas que não desistem nunca/Sou dessas fortes… quando podem/Dessas fracas quando devem/Sou dessas, independente do que pensam/Dessas que vão pra cama, que vão pra lua/Sou dessas…”. Afinal se tudo é movimento, é criação, é liberdade e é novo (a liberdade é o novo e não o oposto da prisão), também a pureza e a honestidade que derivam da carência merecem ser examinadas. Bom não é o bom. Bom é quem venceu (além do mal, por dentro do qual passou) o próprio lado bom com o qual pretendeu se defender do mundo e do qual se tornou dependente.

O amor tem um quê de “felicidade clandestina”, como diria Clarice Lispector (1920-1997). Quem fala dos outros pressupõe que, por ser bom, pode dar o aval à bondade alheia. Falso. Ninguém é imune ao bem e ao mal. Chamar de bom quem nunca se aproximou do mal, quem fugiu dele, parece-me irreal. Mas quem se aproximou do mal e entrou em relação com ele muitas vezes afastou-se do bem. Outras vezes afundou-se nele (mal). Terá solução o impasse? Visão mais profunda situa o comportamento ético não como finalidade das ações privadas e públicas do ser humano. Situa-o como fundamento. O livro de Cecília Sóter é a ética do desejo ultrapassando os limites morais da razão pura.

*Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, formado pelo UniCEUB. Poeta. Doutor e mestre em Estudos Literários pela UFMG.

** Cecília Sóter é a autora de “Vinte poemas de amor para se ler tomando café”.