#AGRESTINA

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

José Luiz do Nascimento Sóter é um dos grandes nomes da geração mimeógrafo e da poesia marginal no Brasil. Desde os anos setenta, o poeta e ativista participa da cena cultural de Brasília e do país com espírito anárquico e independente. Homem coletivo por excelência, é autor de vários livros que se firmaram como pioneiros na edição alternativa e libertária, além de ter lançado, como editor, escritores de estilos diversificados e inventivos, a exemplo de Nicolas Behr, Paulo Tovar, Vanderlei Costa, Vicente Sá e demais autores singulares. Diante do livro #Agrestina (SEMIM EDIÇÕES, 2016), Sóter se aventura a transitar entre espaços, a princípio, bem diferentes: a interioridade e a virtualidade. Em termos poéticos, o autor celebra o Brasil nordestinamente: um país que vai do campo à cibernética, protagonizando Grande Sertão & Veredas Digitais.

Fazer parte de uma cultura que nos dá uma identidade, que nos faz diferentes, que nos dá valores específicos, e, ao mesmo tempo, estar ativamente integrado num contexto social de globalização em pleno desenvolvimento, propondo projetos democráticos com um escopo universalista, enfrentando os riscos paradoxais do etnocentrismo: esse é um dos mais desafios civilizatórios por nós vivenciados. Esse esforço certamente está ligado a uma exploração total do pensamento democrático e a uma procura contínua pelo desafio do humanismo como uma busca interminável. Em “discurso”, Sóter defende o fazer poético como movimento político a favor da liberdade individual e coletiva. Trata-se de uma perspectiva democrática a favor da emancipação popular em termos de razão iluminadora e sensibilidade arrojada: “eu/casseteteado no baixo ventre/na esplanada,/boleado com bala de borracha/no congresso nacional,/cassado da sala de aula por poemas/em anúncios classificados,/torturado psicologicamente/por horas no dops,/impedido de trabalhar por décadas,/em detrimento de minha família/só posso dizer:/DITADURA JAMAIS!!!!!”.

O acontecimento do poder não se esgota na tentativa de romper a resistência ou de forçar a obediência. Somente se poderá conceituar cultura como autorrealização da pessoa humana no seu mundo, numa interação dialética entre os dois, sempre em dimensão social. Algo que não se cristaliza apenas no plano do conhecimento teórico, mas também no da sensibilidade, da ação e da comunicação. Na verdade, o ser humano não se caracteriza, exclusivamente, como conhecedor de dados e informações culturais. Atenciosa, nesse sentido, encontra-se a voz poética de Sóter, em “quem vê ‘face’ não vê face”: “vc desapareceu do meu ‘face’/deixando uma solidão sem fim./cadastrei-me no orkut, twiter, linkdin/e outras redes sociais…/busquei em outras vias/viadutos, via anhanguera/só não fui às ‘vias de fato’./tudo em vão!/sinto-me só no une-verso virtual”.

Quando, porém, se procura extrair dessa realidade um conceito universal de cultura, a dificuldade surge e se agiganta. Toda ação humana na natureza e com a natureza é cultura. A terra é natureza, mas o plantio é cultura. O mar é natureza, mas a navegação é cultura. As árvores são natureza, mas o papel que delas provém é cultura. #Agrestina representa o sujeito produtivo como o objeto produzido. O ser humano não pensa apenas. Ele também reflete sobre o que pensa. É consciência espontânea e consciência crítica. Mas, além de pensar, ele é capaz de sentir, fazer, agir. E todas as formas desse pensar-sentir, desse fazer-agir, constituem objeto de sua reflexão. A respeito, divaga o poeta em busca do aprimoramento do espírito: “eu estava assim/meio gravitacional/uma brisa de curiosidade/soprou na fazenda/e me levou…/… navego nuvens por aí”.

No livro de Sóter, alegoriza-se o estudo próprio do homem livre. Em nossos dias, com o progresso científico e evolução da técnica, de um lado, e, de outro, milhões de pessoas vítimas de alienações de toda ordem, perdeu o crédito certa espécie de humanismo retórico, estéril, fechado em si próprio e, por isso mesmo, como notou Jean-Paul Sartre (1905-1980), conduzindo tristemente ao fascismo. Sóter aproxima respeitosamente o parabólico refletir do metabólico matutar, alimentando-se do duplo sentido do termo diversão – humor e diversidade –, para apresentar curioso operar especulativo: “no telhado tirando goteiras/e pensando na humanidade/essa gata ferida, bipolarizada./consulto freud que indica roberto freire/‘não somatiza, busca gestalt’/que encaminha para hare./troco telhas, varro ciscos, olho os horizontes/e me socorre outro freire:/só a educação salva…/assim como as goteiras/há uma solução, isso há!/mas falta se pendurar nas nuvens…”.

Por esse motivo é falso opor como duas culturas hostis a tecnocientífica e a humanístico-literária. Não à toa o título do livro de Sóter – #Agrestina – apresenta conjuntamente os saberes da arte, da ciência e da técnica. Ambas constroem a cidade humana, porque é por meio delas que se erradica a peste da ignorância e da exploração do homem pelo homem. Tanto que Herbert Marcuse (1898-1979) analisa, em Eros e civilização (1955), como questão central, a possibilidade de uma civilização não-repressiva. O poeta faz amor com tamanha tese, consagrando a livre civilização popular como ato cultural supremo: “c’est la vie/vc acha que apenas a existência de estradas/me levaria às estradas em que vc caminha?!!!/levo ivo engano!/a estrada que move o ser humano é o coração./esse sim/te leva aonde/até a consciência duvida…”. Como sugestão de trilha sonora para melhor saborear o livro de Sóter, recomendo A vida do viajante (1953), composta por Luiz Gonzaga (1912-1989) e Hervé Cordovil (1914-1979): “Minha vida é andar por este país/Pra ver se um dia descanso feliz/Guardando as recordações/Das terras onde passei/Andando pelos sertões/E dos amigos que lá deixei/Chuva e sol/Poeira e carvão/Longe de casa/Sigo o roteiro/Mais uma estação/E a alegria no coração”.

*Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, formado pelo UniCEUB. Poeta. Doutor e mestre em Estudos Literários pela UFMG.