SÁBEDORIA
Marcos Fabrício Lopes da Silva*
Vicente Sá, em Crônicas S/A (2018), fala à fresca com o leitor e, assim, compartilha pensamentos e emoções à vontade. Seu livro é simplesmente sutil e elegante. Joga de cabeça erguida. Não dá carrinho, nem pontapé. Melhor: oferece carinho e cafuné. E, além disso, fala “cachorrês”! Como assim? Crônicas S/A proporciona emoções múltiplas e verdades surreais. São textos, em geral, que representam a passagem da velha psique para uma coisa nova, um deslocamento. O cronista desconfia do sucesso da inteligência comum que sabe arranjar comodamente o mundo pra todos os lados:
“Eu acho que são apenas interpretações, pontos de vista, e, afinal, todos temos o direito de contar as coisas como achamos que elas são ou queríamos que elas fossem. Freud dizia que a maior parte da humanidade só fala a verdade quando não consegue mentir. Seguindo este raciocínio, as mentiras ou invenções seriam uma coisa natural dos seres humanos, uma necessidade de nossa imaginação. Por outro lado, é, também, imperativo que saibamos diferenciar uma verdade de uma não verdade, pois vivemos em um mundo real onde é importante vermos as coisas com clareza. Talvez por isso, no nosso congresso, que entende bem de inverdades, um deputado teve a brilhante ideia de propor em lei que as fake news sejam obrigadas a trazer suas fontes ao final do texto. Assim, garante ele, saberemos de onde a informação vem e poderemos confirmar sua credibilidade. A ideia me pareceu interessante, mas não vou dizer o nome do deputado, nem de onde eu tirei esta informação, afinal, a Lei ainda não foi aprovada” (Fake news não existem).
A matéria literária de um povo ou de uma época transcende à sua forma reconhecida sistematicamente. O que dá autoridade ao fato, muitas vezes, é o acréscimo da imaginação: “Já ouvi explicações que atribuíram ao cheio de um cachorro quente vendido na saída do estádio o empate em três a três entre Botafogo e São Paulo, ou a um pássaro que pousou no gramado, a bicicleta certeira do centroavante que virou o jogo e levou o título. E não adianta nenhuma incauto ou intelectual menosprezar este conhecimento, chamando-o de superstição. Todos nós sabemos que é pura sabedoria popular, adquirida na universidade da vida. E, apesar de, hoje em dia, vivermos tempos difíceis e violentos em um país que às vezes parece dividido, no futebol, nós brasileiros, somos assim, uma única tribo de craques e treinadores que nunca ficam tristes porque – isto também está escrito em algum lugar – somos em parte feitos de nossos próprios sonhos” (Craques e treinadores).
Com o filósofo da Asa Norte, Vicente Sá traz à baila um tipo de filosofia ao rés-do-chão. Logo, destaca-se uma ferramenta especulativa e prática capaz de tensionar os limites de nossa cognição e de nossas necessidades de compreensão da realidade. “É uma das missões dos filósofos saber o quê está pegando mal ou bem para a população” – adverte o ilustre personagem. As paradas de Brasília passaram a ganhar um status de ágora grega ou de praça do povo: “Segundo ele [o filósofo da Asa Norte], o melhor lugar é nos pontos de ônibus, lá as pessoas estão paradas, esperando e mais predispostas a trocar ideias”. O ritmo acelerado da vida brasiliense encontra no filósofo da Asa Norte um excelente contraponto: “De outra feita, me explicou que não se deve abordar as pessoas para conversar quando elas estão caminhando. Elas acham que estão perdendo tempo. ‘Como se o tempo pudesse ser de alguém e que este alguém o pudesse perder’, afirmava, olhando-me nos olhos”. Este momento de apurada reflexão remeteu-me à instigante pergunta do conto O pirotécnico Zacarias (1974), escrito por Murilo Rubião (1916-1991): “Só um pensamento me oprime: que acontecimentos o destino reservará a um morto se os vivos respiram uma vida agonizante?”.
Condenar a vida à reprodução da mesmice é não conhecer “a ausente de todos os buquês”: a flor-palavra, como diria Mallarmé (1842-1898). Com maestria, Vicente Sá recria a realidade, subvertendo-a, transfigurando-a, revelando o seu avesso. Por isso, imprime ao real um caráter ético e um sabor estético, superando a linguagem usual e refletindo, de modo surpreendente, a imaginação criadora. O que dizer da fabulosa crônica nonsense: Meu tio Pseudônimo – uma pequena história de família? “Depois de um copo d’água, Vó Decrépita perguntou se estamos todos bem, mas antes de qualquer resposta tia Carótida deu um grito apontando o lugar vazio onde antes tio Pseudônimo, ou seja lá qual o nome que tenha, e tia Lascívia estavam. A confusão voltou a reinar para a alegria do baixo-clero. Somente uma semana depois é que tia Lascívia voltou para casa com uma expressão de cansada felicidade. Tio Pseudônimo, ou qualquer nome que hoje use, nunca mais foi visto por nenhum de nós. Quem estiver achando que esta história não é verdadeira pode confirmá-la com tia Falácia que não nos deixa mentir sozinhos”.
A realidade ficcional, portanto, é regida por uma lógica da incerteza. Ler Crônicas S/A significa uma experiência extática – estar em si e fora de si. Somos alçados ao imaginário, induzidos a um novo modo de encarar as coisas. Como assinala Aristóteles (384 a.C.-322 a.C), a poética completa o que falta à natureza e à vida. A arte não se satisfaz com o estado factual de ser. “Chorei com a pintura do pôr do sol e voltei para casa como se ainda fosse menino e minha mãe estivesse a me esperar. Abrindo a porta, o passado era a solidão presente e a casa toda rangia e doíam seus silêncios guardados. Por sorte, antes de dormir, uma Lua imensa e animada, com seus dedos de queijo, abriu minha janela e me soprou músicas de carrossel e sono”. Aproveitando o embalo lírico do próprio autor, o livro de Vicente Sá é um cachorro que escreve haikai com o rabo, latindo: “bem-vindo, leitor!”.
*Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, formado pelo UniCEUB. Poeta. Doutor e mestre em Estudos Literários pela UFMG.
** Foto: Semim Edições/Reprodução. Capa do livro Crônicas S/A (SEMIM Edições, 2018), escrito por Vicente Sá.